o quarto.
(1) "G"
"G" era um rapaz normal no universo de sua juventude de bairro dos anos oitenta. Jogava futebol nos campinhos, conversava com amigos nas esquinas e mexia com as meninas nas saídas dos colégios. De vez em quando saia em excursões de pescaria nos rios da região. Não era estudioso e quando terminou o ensino básico, aos dezesseis anos, começou a trabalhar para ajudar a mãe viúva no orçamento da casa. Foram seis meses como office-boy numa firma de contabilidade e alguns dias como auxiliar de escritório numa fábrica de cordas. Nas duas vezes fora demitido por, segundo ele, perseguição por parte dos chefes. Vez que desempregado, até com certo empenho buscava ocupação, mas com a proximidade dos seus dezoito anos de idade, época do alistamento militar, as oportunidades rareavam.
Era alto, mas não arcado; magro, mas não raquítico; branco, mas não pálido. Sua aparência era razoavelmente saudável, exceto por alguns dentes cariados e outros tantos amarelados por culpa do vício do cigarro, adquirido pelo exemplo materno.
Uma vez dispensado do serviço militar (culpa dos dentes cariados), finalmente se empregou como operário numa indústria cerâmica, serviço que não exigia experiência nem qualificação. Mas a tentativa de finalmente enquadrar-se no mercado de trabalho, não foi bem-sucedida: “G” não gostou do emprego. Fez corpo mole já na tarde do primeiro dia de trabalho, chegou atrasado no segundo e no terceiro nem saiu de casa. Achou as tarefas muito pesadas e os chefes muito ríspidos. Quando lhe perguntavam o porquê de sua demissão repentina, “G” desviava o olhar para o horizonte e dizia: -“ tá louco…” Encerrando o assunto. Voltou ao aconchego de seu lar e, desiludido, não mais procurou emprego.
(2) Ela
Descansando da agitação do mundo em uma tarde de sábado, “G”. estava debruçado no portão de sua casa fumando e contemplando a limitada paisagem da rua sem saída, quando sua atenção foi despertada para uma casinha ao longe, em que morava uma moça morena que aparecia de vez em quando, ora na janela lavando louça, ora no quintal estendendo roupas. Ele já a tinha visto muitas vezes no ônibus, sabia seu nome, idade e profissão, mas nunca tinham trocado sequer um cumprimento. Admirá-la de longe em situações tão caseiras dava a ele uma sensação de agradável intimidade com a moça. Mas aquele dia foi especial: um vento forte anunciava um temporal e ela saiu da casa, com um vestido branco esvoaçante, correndo para recolher as roupas do varal antes da chuva. “G” fixou o olhar naquela cena e ficou maravilhado, a ponto de o cigarro lhe queimar o dedo. Ele nunca esqueceria o esplendor daquele sábado.
(3) Café
Passados alguns dias, numa manhã fria e ainda deitado em sua cama às dez horas da manhã, “G” olhou para o velho rádio de válvulas no criado mudo e para o céu cinzento através dos vidros trincados da janela do seu quarto…Sentiu o vento úmido que vinha das frestas da parede trazendo o cheiro de terra molhada misturado com o cheiro de café vindo da cozinha . Sentou-se na cama, contemplou a harmonia poética da matéria estagnada e decidiu que aquele era seu mundo.
No começo, a mãe e a irmã acharam normal o isolamento voluntário de G, mas com o passar das semanas e meses, sentiram que havia algo de errado. Ele já não mostrava interesse por nada: nem o futebol da rua ou as pescarias o faziam sair dos limites de seu quarto e da cozinha. Mas ninguém lhe cobrou nada. A mãe seguia a rotina como se tudo estivesse na ordem natural e segura das coisas.
Passados uns seis meses, a irmã de “G”, mais nova que ele uns três anos, comentou durante um almoço de domingo que estavam precisando de um auxiliar na loja de sapatos em que ela trabalhava. “G” fez que não ouviu, concentrando a atenção em seu prato de macarrão e frango assado. A irmã ameaçou repetir a sugestão de emprego, mas desistiu diante do olhar de reprovação da mãe, que balançando a cabeça pareceu querer dizer um “deixa para lá”.
Todas as outras vezes que a irmã esboçava qualquer conversa sobre a apatia do irmão diante da vida, a reação era a mesma: “G” fingia não escutar e a mãe reprovava. Até que a irmã desistiu, deixando mãe e filho em paz.
(4) A paz
Os dias passavam numa monotonia confortante que, de modo algum, entediava a “G”. Deixar o tempo correr sem pressa era o paraíso. Sentia-se abraçado pelas tardes paradas e sua rotina de dias vazios. Ele realmente não sentia vontade nenhuma de sair dos limites de sua casa ou de abandonar os hábitos de sua estagnação. Ademais, não havia quem o censurasse em sua inércia, pelo contrário, a reação da mãe lhe mostrava uma conivente aceitação.
O fato é que “G” não incomodava a ninguém e o mundo lá de fora não sentia sua falta. Outros já estavam em seu lugar entregando correspondências, pagando contas e carregando caminhões com azulejos.
Do passado “G” só não conseguia evitar as lembranças, que, com o tempo, passaram a atormentá-lo cada vez mais. A simples recordação do mundo exterior o lançava num abismo de angústia. Às vezes, deitado em sua cama após o almoço, ele lembrava de coisas pequenas, acontecimentos que não se relacionavam entre si, soltos, fragmentados, longínquos, mas que lhe causavam episódios de pesada aflição.
Uma vez lembrou-se do cheiro do óleo queimado que os ônibus soltavam; em outra lembrou quando estava numa fila de banco e um homem de chapéu na sua frente começou a tossir sem parar; até a recordação do gosto gorduroso do sanduíche de almôndega que comia na hora do almoço quando era office-boy iniciava uma tempestade em sua mente.
Quando vinham estas recordações, “G” sentia um mal estar esquisito, sendo obrigado a levantar e tomar um copo de água gelada, acender um cigarro ou mesmo ir até o portão para respirar um pouco. Mas a pior das lembranças era a da moça de branco, pois vinha acompanhada de alucinações visuais: roupas balançando ao vento e ela correndo desesperada para recolhê-las antes da chuva. Lembrar-se daquele dia lhe custava a tranquilidade de um dia, ou até de uma semana inteira.
(5) A casa
A relação de “G” com o mundo era o contato com sua casa. Sempre tinha sido assim. Os pais, a irmã e tudo o mais eram acessórios daquela construção frágil e acolhedora. Os móveis, as paredes, o teto, o chão, o fogão à lenha…Tudo fazia parte de um conjunto harmônico, que lhe oferecia calor e aconchego nos dias frios e sombra e frescor nos dias quentes. Vez que sozinho em seu castelo por quase todo o tempo, esta conexão só se fortaleceu.
O melhor período do dia para “G” era aquele intervalo preguiçoso de tempo que começa depois do almoço e se estende até às seis da tarde, em que até o estalar das tábuas das paredes podiam ser ouvidos, tão grande era o silêncio. Os sons da rua eram mínimos e somente o canto dos sabiás interrompia sua meditação descomprometida. Tempo do puro e simples descanso, não sem antes fumar um cigarro, lembrando com certa aflição das pessoas que, naquelas horas modorrentas, estavam presas em escritórios ou andando pelas ruas fedidas do centro da cidade. Gente como sua irmã, obrigada a ficar horas a fio em pé, encostada numa coluna da loja de sapatos esperando os clientes; ou como sua mãe – cozinheira num restaurante popular. Mas em casa, “G” estava seguro.
A casa era humilde. Após cinco anos da morte do pai, o mato tomava conta dos arredores da pequena “meia-água” de madeira, feita nos fundos do terreno. Eram dois quartos, um ocupado pela mãe e pela irmã e outro por “G”; uma sala com vista para a rua, onde a mãe costurava; uma cozinha com fogão à lenha, uma velha geladeira marca “Prosdócimo” e uma mesa pequena com quatro cadeiras. O banheiro era fora de casa, encostado no muro dos fundos. Na frente da casa, junto da porta principal, estava uma casinha com teto de zinco, sempre ocupada por um entediado cão, preso por uma corrente de não mais de metro e meio. A rua era sem saída, terminando num córrego em que eram despejados os esgotos da região. Após esta vala, havia um grande terreno da companhia de força e luz, por onde passavam as linhas de alta tensão sustentadas por enormes torres de metal. Ao longe, via-se o muro branco de uma fábrica de móveis.
(6) Os dias
O primeiro sinal que o bairro despertava era o apito da fábrica de móveis soando pontualmente às seis e meia da manhã. “G” não acordava com aquele som estridente há muito tempo. Aprendeu a ignorá-lo. O que lhe causava o primeiro incômodo do dia era mesmo a sua mãe dizendo “- já vou indo” às sete horas da manhã.
De segunda a sábado era assim: a mãe se despedia e o silêncio reinava até o barulho da porta da cozinha fechando as oito e vinte, sinal de que a irmã seguia para o trabalho na loja. Perto das dez horas, “G” acordava, ia ao banheiro e depois para a cozinha, onde sobre o fogão à lenha a mãe deixava um bule com café. Ele fazia seu desjejum, composto sempre de café com leite, pão branco feito em casa e margarina. Depois voltava para a cama, ligava o rádio e assim ficava até meio dia e meia, quando a irmã chegava para almoçar. “G” aproveitava e comia recostado na cabeceira da cama com o rádio ligado. A irmã saia, “G” deixava seu prato sujo na pia e, voltando para o quarto, fumava o primeiro cigarro do dia. Perto das quatro horas, o que havia restado do café da manhã era requentado e consumido, junto com o segundo cigarro do dia.
Por volta das oito da noite, chegavam quase juntas mãe e irmã. “G” conversava um pouco e, após o jantar, voltava para o quarto para escutar no rádio o programa “Turma do Bate-Papo”, que discutia o futebol da cidade. O sono vinha depois do último cigarro, perto da meia noite.
O rádio de válvulas era herança do pai e permanecia ligado por quase o dia inteiro. Pela manhã, “G” ouvia os programas policiais, à tarde eram as músicas e programas de variedades, à noite (após a Voz do Brasil), havia o noticiário do dia e lá pelas onze da noite a mesa redonda do futebol.Nos finais de semana a programação variava um pouco, mas o principal eram os jogos de futebol.
Um dia, a irmã chegou contente em casa dizendo que havia comprado uma TV em prestações, “G” não se entusiasmou e ficou indiferente até quando a kombi da loja de eletrodomésticos descarregou o novo aparelho. Ele conhecia televisão de quando era criança, mas já havia esquecido a sensação de assisti-la. Bastavam o som do rádio e a imaginação. Quando a imagem em preto e branco surgiu na tela causando sorrisos na mãe e um ar de satisfação na irmã, “G” rendeu-se e a partir daquele dia o rádio ficou mais tempo desligado.
(7) O Mundo
A mãe de “G” contou num jantar que um carro preto a havia seguido por três quadras, fazendo com que aumentasse o passo para despistá-lo. Desabafou que não havia mais segurança para as pessoas de bem. Já não bastava um vizinho, viúvo já há vinte anos, que não tirava os olhos dela quando a caminho do ponto de ônibus. A sensação de estar sendo vigiada lhe causava palpitação. O perigo do mundo lhe exigia cada dia mais cautela e ela não confiava em ninguém de fora de sua casa.
(8) O tempo
Mais um dia raiava. A mãe já havia saído para o trabalho e o cheirinho do café impregnava a cozinha. “G” fez sua xícara de café com leite e açúcar, cortou sua fatia de pão e a besuntou com margarina. Mastigando, fixou o olhar no teto verde-escuro do quarto, imaginando que o dia lá fora seria bonito, mas dentro de casa não estava ruim. No fim das contas, pensou: “ daqui a pouco é hora do almoço”.
Com o passar dos meses, as roupas começaram a ficar grandes no corpo de “G” Além da magreza, sua pele começava a perder a coloração e ele, que já era naturalmente branco, tornou-se pálido e com vasos sanguíneos aparecendo. Os dentes amarelavam cada vez mais por conta do cigarro; os cabelos castanhos e lisos escorriam até a altura dos ombros e a barba irregular era raspada somente uma vez por semana.
Numa tarde de sábado, uma vizinha perguntou sobre o paradeiro de “G” para sua mãe. Ela desconversou dizendo que seu filho estava bem, “só um pouco desanimado”.
Três anos depois, a mesma vizinha voltou a perguntar sobre o desaparecimento de G, recebendo como resposta um olhar agressivo, acompanhado da expressão “meu filho está bem, e os seus por onde andam?”. Nunca mais a mãe de “G” cumprimentou aquela mulher inconveniente que, por sua vez, também achou melhor manter distância dos problemas alheios. Surgiu então um boato na vizinhança dizendo que “G” estava preso por algum crime. Outra versão dizia mais; que “G” havia morrido e a mãe se negava a acreditar. Mas o vizinho da frente desmentia tudo, pois ele sempre via “G” debruçado na janela ou dando restos de comida para o cachorro.
Aos amigos de “G” que ainda insistiam em procurá-lo para um jogo de futebol ou uma pescaria, a mãe mentia dizendo que ele estava morando com um tio em outra cidade e, ao fim de dois anos, mais ninguém o procurou.
Era como se o mundo lá fora estivesse congelado esperando-o. A mãe e a irmã seguiam suas vidas como se “G” só existisse dentro de casa, como se fosse um móvel, um cão de estimação, uma planta…Não fosse pela palidez, quem o visse diria que ele era só mais um dos vagabundos que passavam as tardes jogando sinuca pelos bares do bairro. Mas “G”era diferente, ele não saia de casa por nada.
O tempo passava vagarosamente no claustro doméstico e “G” não dava mostras de estar incomodado com isso. Os dias as semanas, os meses, os anos só percebidos quando aconteciam os rituais ordinários das datas, como a vizinha trazendo a capelinha uma vez por mês, os aniversários, o Natal e o ano novo… “G” não gostava dessas quebras da normalidade.
(9) Casamento
Uma tarde de sábado, a irmã voltou acompanhada depois do trabalho na loja. Veio com ela um rapaz quase da mesma idade de G, rosto branco, cabelos cacheados castanho claros, um pouco acima do peso, usando óculos e camisa xadrez de mangas curtas por dentro da calça caqui. “G” já havia percebido que a irmã estava diferente nos últimos meses, demorando mais tempo para arrumar-se para o trabalho e até usando perfumes. Sem contar as conversas sussurradas com mãe. O rapaz era contador do escritório que prestava serviços para a loja de sapatos que a irmã trabalhava. Ao ser apresentado a “G”, o rapaz deu um sorriso consciente, demonstrando já estar a par da estranha maneira de viver do irmão da moça.
“G” sentiu-se pouco à vontade com aquele estranho em sua casa, no seu espaço, mas não foi mal-educado. Após o cumprimento inicial, recolheu-se ao quarto para só retornar depois que o moço tomou o café da tarde e foi embora. “G” ouviu pelas paredes de madeira que o rapaz pedira autorização para namorar sua irmã, percebeu também que sua mãe foi de uma incomum gentileza para com o estranho. Um ano e dois meses depois, a irmã de “G” casava-se com o rapaz de óculos e, mesmo com os apelos dela, ele não foi à cerimônia de casamento, nem à festa na casa do noivo. Preferiu ficar e cuidar da casa. Ele dormia quando a mãe chegou na madrugada, de carona com um irmão do noivo. Agora eram ele, a mãe, a casa e um cachorro. A partir daquele dia “G” só via sua irmã uma vez por semana. Depois de um ano, as visitas ficaram mais esparsas, até fixarem-se em uma por mês.
(10) A Tormenta
Numa noite, já passados uns dez anos da decisão de não mais sair de casa, a aparência de “G” deixou sua mãe preocupada. Branco como uma folha de papel, cheirando a vômito, olhos fundos e com olheiras roxas. A mãe perguntou o que tinha acontecido, “G” fez pouco caso e disse que o almoço lhe tinha feito um pouco mal. Mas era mentira, porque naquela tarde de terça feira ele tinha sofrido com uma estranha e inédita tempestade na alma. Tudo começou durante o programa de esportes da TV. Deitou-se como de costume e lhe sobreveio um leve sono. De repente elas, as lembranças, começaram a vir como que em enxurrada. Uma atrás da outra, sem parar. Eram cheiros, gostos, imagens, sensações que lhe atormentaram por umas quatro horas que pareceram uma eternidade. Eram sensações misturadas: o cheiro do perfume da recepcionista do escritório de contabilidade, a visão dos dentes tortos do chefe de serviço; o bigodinho ralo do motorista de ônibus; o brilho das pedras brancas do calçadão do centro; o tênis preto que ele via numa vitrine e que nunca conseguiu comprar; o ascensorista octogenário e seus tristes olhos azuis; o sentimento de medo de ser assaltado a caminho do banco; as lembranças do pai descansando na cadeira; do futebol de rua; das pescarias da infância; do padre lhe dando uma descompostura durante a confissão; da vez que andou na carroceria de um caminhão; da moça de branco… Tudo vindo como que em raios de luz e som disparados contra sua cabeça. Ele queria acordar, mas não estava dormindo, sentia o colchão duro, via nitidamente o teto descascado e ouvia o cão latindo na porta da sala. Não estava dormindo, mas era como que sonhasse, ou pior: como se estivesse dentro do sonho. A cabeça de “G” esquentou fazendo suas orelhas ficaram vermelhas, a boca secou e ele absolutamente não conseguia ficar em pé. Quando tentou com muito esforço chegar até a janela para respirar, caiu no chão num grande tombo, vomitando a seguir. Sem conseguir levantar, ele aí sim dormiu, só acordando horas depois, quando sentiu o cheiro do jantar que a mãe requentava na cozinha. Tomou um chá de capim – limão e voltou à normalidade.
(11) Ela, a morte
Numa manhã de segunda feira, “G” acordou e sua atenção foi despertada pelo incomum burburinho que vinha da rua. Saindo alguns metros da porta de casa, mas sem mostrar-se muito, “G” viu uma multidão em frente à casa da esquina, todos em volta de uma ambulância vermelha de portas abertas.
Naquela casa moravam duas irmãs com a mãe idosa. Mais tarde “G” soube que a mais nova das moças fora encontrada morta em seu quarto. A mãe de “G” comentou sobre boatos de suicídio.
Ele conhecia a moça que morreu. Na juventude, ela chamava a atenção dos rapazes do bairro: loura, cabelos compridos e lisos, olhos azuis intensos que realçavam sua atitude. Aos quatorze anos, ela já fumava e quando fez dezesseis os pais não mais conseguiram segurar sua sede de mundo. Passou a frequentar a vida noturna da cidade, com seus bares, boates e “discotecas”, aparecendo de tempos em tempos com um namorado novo.
Um dia a moça engravidou e, como mandava a tradição, casou-se com o pai da criança, que era um homem com ares de pequeno-burguês, mais velho que ela uns dez anos. Nasceu uma menina parecida com a mãe, que cresceu sob os cuidados do pai que, precavido, não deixava a filha ter contato com as crianças do bairro da mãe, tidas por ele como representantes da pobreza e de seus vícios…
Um dia o pequeno-burguês saiu de casa para jamais voltar e a moça passou muito tempo sem ser vista. A menina, filha da moça, passou a ser criada pela avó e a poder brincar com as crianças vizinhas até quando cresceu e virou adolescente. Pouco se viu e ouviu falar da moça loira até aquele fatídico dia da ambulância vermelha.
“G” entristeceu-se com a morte da moça e fez daquela tragédia tema de longas meditações nas tardes quentes de março. Será que ela fez o que dizem que fez? E por quê?
(12) A mãe
O tempo passou e a mãe de “G” sofria com os problemas da idade. Aos oitenta e sete anos, já não podia cortar a lenha para o fogão ou fazer a limpeza da casa. Distraia-se consertando as roupas dos netos ou assistindo novelas. G, por sua vez, mantinha a mesma rotina dos últimos trinta anos.
Certa tarde, a mãe saiu para receber sua aposentadoria e não voltou. “G” preocupou-se quando a fome bateu à noite e saindo de seu quarto não a viu sentada, como sempre estava, na velha poltrona da sala. “G” achou que ela talvez estivesse visitando algum parente, ou que havia perdido o ônibus. Passadas algumas horas, uma vizinha bateu palmas na frente de casa, insistindo até “G” atendê-la. Ele vestiu um casaco e foi até o portão. A mulher disse que havia recebido um telefonema da irmã de “G”, avisando que a mãe deles havia passado mal na agência bancária, e estava agora num hospital do centro da cidade. “G” agradeceu e entrou, esperando até que sua irmã trouxesse a mãe de volta.
Na manhã seguinte, a irmã de “G” veio até a casa, acompanhada do marido. Ela bateu na porta e quando “G” foi atender, percebeu que algo ruim havia acontecido. A irmã chorando disse que a mãe tinha morrido naquela manhã e que viera pegar as roupas para preparar o sepultamento num cemitério distante. Ele baixou o olhar e disse que ficaria cuidando da casa. A irmã não insistiu.
(13) Só
Com a morte da mãe, a irmã de “G” ofereceu ajuda para que ele voltasse ao mundo. “G” não concordou e a irmã, conformada, passou a lhe trazer mantimentos periodicamente. Num sábado à tarde, quando veio trazer as provisões para a semana, a irmã de “G” disse que em um mês estaria de mudança para outro país. Após um ano desempregados, ela e o marido concluíram que o melhor seria tentar a sorte nos Estados Unidos, pois tinham conhecidos que já trabalhavam como operários da construção civil em Boston. Ele seria eletricista e ela faxineira ou empregada doméstica. A ideia era ficar lá no máximo um ano, juntar dinheiro suficiente para construir uma casa nova naquele terreno onde “G” morava e voltar. Ela prometeu que ele teria um grande quarto na nova casa. “G” pareceu não entender muito bem a dimensão das circunstâncias, mas sentiu que a irmã estava insegura e triste. Dali uns três meses ela veio despedir-se e trouxe junto a vizinha, que receberia mensalmente da irmã de “G” o dinheiro suficiente para ele manter-se alimentado e com energia elétrica em casa.
“G” viu sua irmã afastar-se com lágrimas nos olhos, não sem antes olhar cada cômodo daquele úmido casebre e escrever num papel o número do telefone da casa em que ficariam nos Estados Unidos, recomendando que “G” lhe telefonasse caso sentisse alguma dificuldade.
(14) Ninguém
A vizinha trazia para “G” todo sábado à tarde o que fora combinado: modestos itens de higiene; pão caseiro, arroz, feijão e carne já preparados para toda a semana, mais café e margarina baratos. A água vinha de um poço dos fundos da casa, purificada com o velho filtro de barro. Ele só esquentou a comida enquanto durou a pilha de lenha. No começo as provisões sobravam, mas com o passar do tempo, mal chegavam até sexta feira. A situação só começou a incomodar “G” quando não havia café nem pão suficientes. Mas ele não ousava reclamar.
Passou-se um ano e meio e num sábado a vizinha disse para “G” que sua irmã tinha lhe telefonado avisando que ainda não seria possível voltar para o Brasil, pois enfrentavam dificuldades de emprego e dinheiro. Pedia mais um tempo de espera.
Após este dia, a idosa vizinha se mostrou cada vez mais ranzinza e trazendo menos provisões. Certa tarde, ela veio acompanhada de uma moça de guarda-pó branco, o que fez com que “G” não lhe abrisse a porta. Após uma breve conversa a moça foi embora, dizendo que “não podia fazer nada” e a vizinha, irritada, deixou aos pés da porta menos comida do que o costume. Outro dia, ela disse para “G” que há meses sua irmã não lhe mandava nenhum dinheiro e que ela o estava alimentando às próprias custas. “G” não lhe respondeu (ele quase nunca dirigia a palavra à senhora) e nem acreditou no que ela disse. No dia seguinte ele notou que não havia mais eletricidade em sua casa, o que na prática só o colocou na escuridão noturna, pois há muito tempo a TV, o rádio e a geladeira já não funcionavam. Passados alguns meses, já não era a velha senhora quem trazia as poucas provisões: um homem jovem de cabelos cacheados castanho claros pulava o baixo muro e deixava um pacote com pão, latas de sardinha e café solúvel. O rapaz tentou várias vezes conversar, mas “G” não lhe abria a porta e nem lhe respondia. Até que ele também deixou de trazer comida.
(15) A fome
Sentindo a fome de cinco dias a lhe oprimir os sentidos, “G” lembrou que havia uma padaria distante três quadras de sua casa, rua acima, e lá um telefone público. Fechou a porta da casa com duas voltas na chave, certificou-se de que estava levando as duas fichas telefônicas no bolso e aproximou-se do portão de saída para a rua. Com uma estranha vergonha, fingiu estar fazendo algo corriqueiro e até deu uma olhada num imaginário relógio de pulso.
Mas ninguém testemunhou seu medo de atravessar os limites do muro. “G” chegou ao portão enferrujado, há trinta anos respeitado como fronteira do seu mundo, e seguiu com passos fingidamente decididos para o leito da rua. A vista era só um pouco diferente daquela apreciada do próprio portão, mas não deixava de ser assustadora. A subida da rua agora era toda emoldurada por grandes árvores, viam-se casas novas com três andares e conjuntos de sobrados com pequenas janelas coloridas. O conjunto habitacional dos operários e a antiga fábrica de móveis já não existiam, em seus lugares foram construídos cinco blocos de pequenos apartamentos. Nem a casa da moça de branco existia mais.
“G” seguiu andando pelo canto da rua, desprezando as calçadas sombreadas; avançou bravamente metro a metro; seus olhos ardiam pelo reflexo do sol no asfalto negro e os músculos de suas pernas queimavam diante do incomum esforço da subida, seu estômago doía como se tivesse engolido um punhado de brasas incandescentes.
Pouco se arriscando em seu caminho, “G” viu pessoas fora de casa e crianças brincando em jardins protegidos por muros e grades, não reconhecendo ninguém. Por sua vez, os que viam “G” caminhando não lhe dedicavam mais do que décimos de segundo de atenção, com receio de, ao encarar aquele maltrapilho barbudo, ele viesse a lhes pedir algo.
Vencida a subida, o suor corria pelos cabelos, fronte e barba de “G” Ele procurou a padaria e viu que a rua em que ela deveria estar agora era larga e asfaltada, com carros velozes em alta velocidade, a ponto de ser difícil atravessá-la. A parada de ônibus, antes indicada por uma placa amarela num poste de madeira, agora era uma estranha cabana de vidro. Não havia padaria nenhuma ali, muito menos telefone público. “G” olhou em volta e toda aquela confusão o impeliu a voltar para casa rápido, muito rápido.
De volta ao quarto, a dor no abdômen aumentava, a cabeça doía e o sono já não era tranquilo. Uma tempestade durante a madrugada havia deixado toda a casa molhada. Pelas frestas do assoalho era possível ver um curso de água turva que descia o terreno em direção ao riacho. A cama de “G” cheirava a mofo; o fogão à lenha já apresentava crostas de ferrugem e servia como abrigo de baratas e camundongos.
Pela manhã, “G” decidiu procurar novamente um telefone para falar com sua irmã, mas desta vez dobrou à direita na esquina, em direção ao local onde ficava a casa da moça de branco. Tudo era muito estranho e novo e ele em nenhum momento sentiu-se perto de seu mundo, de sua casa ou de sua vida. Passou pela sua antiga escola e mais adiante reconheceu uma igreja evangélica em que havia estado uma vez quando criança. Após caminhar a esmo por umas quatro horas, com as dores o torturando, “G” encontrou um grande supermercado e pensou que lá talvez houvesse um telefone público. Dirigiu-se à entrada e assustou-se com a agitação frenética que viu. Num repente resolveu virar as costas e voltar para sua casa, mas lembrou da irmã ao mesmo tempo em que viu um telefone público na frente de um bar, do outro lado da rua.
Ansioso, pegou as fichas telefônicas e o papel com o número anotado e correu sem nenhum cuidado com o trânsito.
Ninguém percebeu o maltrapilho barbudo que ficou vinte minutos com o rosto escondido dentro do “orelhão”, até que o dono do bar o viu e ficou comovido com o indigente que insistia em tentar inserir antigas fichas no compartimento destinado aos cartões de créditos telefônicos.
Silenciosamente o homem lhe ofereceu ajuda, colocando um cartão na máquina e liberando-a para uma ligação. “G” entendeu o favor e agradeceu com a cabeça, dando suas duas fichas ao homem. Passados mais dez minutos “G” saiu sem dizer nenhuma palavra, deixando em cima do aparelho azul um papel amassado com um longo número anotado.
Andando sem direção e com uma inexplicável pressa, quando a noite chegou “G” não sabia onde estava. Via ruas, casas, carros, luzes, ouvia muitos sons…Mas nada que para ele fizesse algum sentido. A dor na barriga estava ainda mais forte, o que lhe obrigava a parar de tempos em tempos curvado sobre seu ventre.
(16) O sono
Após vagar muito tempo pela noite gelada, faminto e sedento, “G” tomou água no chafariz estragado de uma praça vazia e mal iluminada. Sentindo-se muito fraco e dolorido, deitou-se em posição fetal num banco úmido, escondido pela vegetação. Fechou os olhos e lembrou de sua cama, que agora estava vazia, e temeu que algum ladrão tivesse entrado em sua casa. Pôs a mão no bolso da calça e ficou aliviado por sentir que a chave da porta da frente ainda estava lá. Respirando com dificuldade o ar frio da madrugada ele pensou que seria melhor esperar amanhecer para encontrar o caminho de volta. A dor no ventre havia se espalhado para as costas e manter os olhos abertos tornou-se difícil. Deitado no canto escuro do mundo, “G” adormeceu exausto, como há muito não adormecia.
Em seu sono, ele sentiu um cheiro de café recém coado e em sua boca veio o gosto de um pedaço de pão caseiro com margarina…
E aquela noite não acabou.
[Faas_Rezrl]