o sapateiro comunista
A pequena oficina ficava numa rua comercial ponteada de sobrados antigos e mal conservados. Era apenas uma porta comum acima da qual havia uma placa quase artesanal em que se lia a palavra "SAPATEIRO" pintada num fundo branco com letras maiúsculas azuis. Na pequena sala de, no máximo 3 por 4 metros, havia um balcão antigo de madeira pesada e com tampo de fórmica verde, já muito desbotada. Atrás do balcão, era visível até da calçada uma bagunça composta de pilhas de retalhos de couro, ferramentas, tubos de cola, cordões e fitas. Entro e dou de cara com ele, o sapateiro, um senhor de uns setenta e poucos anos. O procurei com a intenção de salvar um calçado que descolava a sola. Explico o problema e, enquanto ele examina o sapato, dou uma olhada quase involuntária nas paredes do estabelecimento. Além dos previsíveis calendários antigos e indefinidos recortes de jornal amarelados, está lá uma cópia surrada do clássico retrato de … Karl Marx!
Uma olhada mais atenta e vejo que vários dos recortes que decoram as paredes tratam do comunismo, mais especificamente daquele peculiar comunismo da antiga União Soviética: estampas de estilo militar ponteadas com textos ideológicos sobre o valor do trabalho e dignidade da classe trabalhadora. Enquanto o sapateiro vai ao fundo da loja ver se tem material para me atender, lembro que também já fui empolgado por aquele tipo de misticismo filosófico do comunismo soviético. Mas isso foi lá pelos meus dezesseis anos de idade, quando eu trabalhava como bancário durante o dia e era estudante secundário à noite. O comunismo me foi apresentado por livros “proibidos” e boatos quiméricos que falavam da ideologia “do povo trabalhador no poder” e fui cativado por aquela aura de justiça social que tanto enfeitiça os estudantes, os pobres e os indignados em geral.
Em especial, eu gostava muito dos símbolos gráficos soviéticos: a foice e o martelo cruzados, em amarelo num fundo vermelho, exalando altivez e força, a rosa vermelha, as estrelas de cinco pontas e seu grafismo minimalista. Mas, além da atração visual, lembrei das ideias que justificavam a revolta contra o capitalismo: a mais-valia, a desumanização dos miseráveis a partir da Revolução Industrial, as crianças moídas pela máquina de fazer dinheiro dos capitães de indústria e a relutância dos patrões em fazer valer os direitos trabalhistas já adquiridos. Lutar contra tudo isso, ou pelo menos ser contra, valia a pena.
Mas o tempo passou e, conforme fui crescendo e compreendendo a realidade, a ideia comunista como solução para as injustiças foi se esvaindo. Era só mais um engano, uma ilusão parecida com a crença de que o melhor sempre vence, de que a justiça sempre prevalece, de que auto-ajuda funciona ou de que campeonatos de futebol são sérios…
Era só mais uma utopia, que desaba quando se vê os frutos reais que ela produz no processo e nos resultados: morte de inocentes em nome da “revolução”, genocídio, ascensão de uma elite despótica e sanguinária, miséria, medo, tolhimento de liberdades.
Nada muito diferente de seu oposto teórico: o capitalismo selvagem, com o acréscimo de ser muito mais explicitamente agressor de indivíduos. Se o capitalismo deixa os excluídos morrerem, o comunismo tem pressa e os executa. Como já disse alguém: para o comunismo “é preciso amar o amanhã, como se não houvesse as pessoas”, fazendo uma inversão do que foi dito por Renato Russo na música “Pais e Filhos”.
Mas o retrato do ilustre alemão barbudo estava lá na parede da velha sapataria, fitando a todos com seu olhar fóssil. Por uma fração de segundo, pensei em indagar sobre o retrato, mas sensatamente contive o impulso, afinal o sapateiro ainda não havia me dito quanto custaria o serviço. Ele fez uma análise da qualidade do sapato e das opções de reparo e pediu um preço que achei honesto, prometendo que em três dias o sapato ficaria melhor que um novo.
No caminho de volta, pensei o quanto exótico era um sapateiro comunista em pleno Brasil urbano de 2014. Ele provavelmente nunca tinha lido “O Capital”, talvez só conhecesse Fidel, Pol Pot, Stalin e Mao sob a ótica das românticas narrativas da propaganda ideológica e das conversas com os “camaradas” nos botecos do bairro São Francisco. Mas senti que, inegavelmente, a mística do paraíso operário fazia algum tipo de bem àquele senhor idoso. Ele, suponho, não aprovaria os massacres, o controle estatal sobre as liberdades individuais ou os privilégios da elite dirigente comunista. Ele apenas sonhava com aquele Shangri-La etéreo em que os trabalhadores não seriam reduzidos à ordinários meios de produção.
No imaginário dele, a ilha chamada Utopia deveria ainda ser buscada com todas as forças, nem que fosse com a simplória veneração de um vulto mítico. Quem sabe ele foi um menino-operário, submetido à patrões truculentos, ou um bancário humilhado por chefetes ambiciosos… Talvez tivesse perdido o pai, envenenado por chumbo ou amianto… Nesse hipotético calvário pessoal, Marx era seu salvador e, teimosamente, ele levou para a vida aquele idealismo, fechando olhos e ouvidos para as contestações, contradições e antinomias que a realidade (essa malvada), insiste em opor às ideologias políticas e com e tantas outras filosofias que desconsideram as mais fundamentais fraquezas humanas: o egoísmo e a sede pelo poder.
Ademais, o sapateiro teve a ventura de nascer e viver num país que, se nunca sofreu uma revolução comunista, ainda tropeça nos desarranjos do capitalismo.
Passados três dias, fui buscar meu sapato e ele estava pronto e limpo, realmente melhor do que quando saiu da fábrica.
O sapateiro comunista é bom no que faz.
[Faas Rezrl]