campo santo.
Na pequena cidade do litoral, o cemitério foi construído num descampado da planície, longe da praça central e afastado uns quinhentos metros da praia, como recomendavam as boas práticas sanitárias. Lá, nas lonjuras, permaneceu solitário por décadas.
Um muro de alvenaria branca o protegia dos avanços da mata e das dunas amareladas. Na entrada, um portão de ferro escurecido, emoldurado por um arco, trazia em letras góticas desbotadas a maior das advertências: "memento mori", algo como "lembre-se que você também é mortal". No exato centro geométrico do terreno, uma grande cruz negra se destacava, como uma solitária árvore seca estendendo sua sombra sobre os túmulos.
Com o passar dos anos, casas de veraneio começaram a pontear em volta da modesta necrópole. No começo eram de madeira, depois de alvenaria, depois sobrados de dois andares e, por fim, pequenos edifícios.
Indiferentes ao avanço dos vivos, as covas encimadas por cruzes tortas de madeira e os jazigos pintados com tinta barata mantiveram a dignidade.
Ando nas vielas de areia encardida do cemitério, sob um sol abrasador que desbota as sempre presentes flores de plástico. Estranhamente, passo quase imune às mensagens do portão e dos semelhantes deitados. Nesse instante metafórico, sinto-me dispensado do próprio compromisso fatal, como fosse um observador imortal sondando a volta ao pó, alheio à condição humana.
Vejo numa esquina o túmulo azul claro desbotado da avozinha que passou a vida limpando peixes e cuidando dos sete filhos. Depois que enviuvou, ela fazia pão caseiro e bolos sob encomenda. Mais para a frente, está o menino de três anos, picado por uma cobra. Ao lado dele está o velho pescador bonachão que quase todos os domingos reunia os filhos e netos para um churrasco ou peixe feito na brasa. Ele só andava de bermudas e chinelos de dedos. A moça que morreu de parto tem uma pequena placa de granito negro com seu nome e o da sua filha natimorta. A família de um antigo prefeito tem um mausoléu feio e malcuidado, mas ostentoso para aquele lugar. Quase no muro dos fundos, um túmulo ainda imaculadamente branco tem a foto recente do rapaz que foi trabalhar na capital e, dois anos depois, sucumbiu num acidente de motocicleta. Ao lado dele estão seus avós.
É tarde de domingo, e presencio quando chega ao cemitério um enterro ao mesmo tempo em que uma família de veranistas vizinhos faz um almoço festivo. O mal estar é nítido. Eles, por respeito ou repulsa, fecham portas e janelas e abaixam o volume da música alegre. Observo melhor as feições e vejo que há uma tristeza honesta, uma certa sensação de intromissão no luto alheio. Recolhem-se para o interior da casa, como se estivessem pedindo perdão por estarem felizes em seu lazer enquanto os nativos morrem e choram seus mortos numa realidade paralela.
Dois mundos que dividem o mesmo espaço-tempo. Regozijo e pesar numa síntese forçada e dolorosamente autêntica dessa nossa caminhada em substâncias que não são nossas.
O verão passa e as casas pouco a pouco se esvaziam de vida.
Não há mais cheiro de pão assado, churrascos em família nem música.
Esperam a ressurreição, quando voltarão a alegria, as crianças sorrindo e as flores reais.
Por ora, o silêncio.
[Faas_Rezrl]
Um muro de alvenaria branca o protegia dos avanços da mata e das dunas amareladas. Na entrada, um portão de ferro escurecido, emoldurado por um arco, trazia em letras góticas desbotadas a maior das advertências: "memento mori", algo como "lembre-se que você também é mortal". No exato centro geométrico do terreno, uma grande cruz negra se destacava, como uma solitária árvore seca estendendo sua sombra sobre os túmulos.
Com o passar dos anos, casas de veraneio começaram a pontear em volta da modesta necrópole. No começo eram de madeira, depois de alvenaria, depois sobrados de dois andares e, por fim, pequenos edifícios.
Indiferentes ao avanço dos vivos, as covas encimadas por cruzes tortas de madeira e os jazigos pintados com tinta barata mantiveram a dignidade.
Ando nas vielas de areia encardida do cemitério, sob um sol abrasador que desbota as sempre presentes flores de plástico. Estranhamente, passo quase imune às mensagens do portão e dos semelhantes deitados. Nesse instante metafórico, sinto-me dispensado do próprio compromisso fatal, como fosse um observador imortal sondando a volta ao pó, alheio à condição humana.
Vejo numa esquina o túmulo azul claro desbotado da avozinha que passou a vida limpando peixes e cuidando dos sete filhos. Depois que enviuvou, ela fazia pão caseiro e bolos sob encomenda. Mais para a frente, está o menino de três anos, picado por uma cobra. Ao lado dele está o velho pescador bonachão que quase todos os domingos reunia os filhos e netos para um churrasco ou peixe feito na brasa. Ele só andava de bermudas e chinelos de dedos. A moça que morreu de parto tem uma pequena placa de granito negro com seu nome e o da sua filha natimorta. A família de um antigo prefeito tem um mausoléu feio e malcuidado, mas ostentoso para aquele lugar. Quase no muro dos fundos, um túmulo ainda imaculadamente branco tem a foto recente do rapaz que foi trabalhar na capital e, dois anos depois, sucumbiu num acidente de motocicleta. Ao lado dele estão seus avós.
É tarde de domingo, e presencio quando chega ao cemitério um enterro ao mesmo tempo em que uma família de veranistas vizinhos faz um almoço festivo. O mal estar é nítido. Eles, por respeito ou repulsa, fecham portas e janelas e abaixam o volume da música alegre. Observo melhor as feições e vejo que há uma tristeza honesta, uma certa sensação de intromissão no luto alheio. Recolhem-se para o interior da casa, como se estivessem pedindo perdão por estarem felizes em seu lazer enquanto os nativos morrem e choram seus mortos numa realidade paralela.
Dois mundos que dividem o mesmo espaço-tempo. Regozijo e pesar numa síntese forçada e dolorosamente autêntica dessa nossa caminhada em substâncias que não são nossas.
O verão passa e as casas pouco a pouco se esvaziam de vida.
Não há mais cheiro de pão assado, churrascos em família nem música.
Esperam a ressurreição, quando voltarão a alegria, as crianças sorrindo e as flores reais.
Por ora, o silêncio.
[Faas_Rezrl]