o demônio dos dois cestos
Fosse eu um demônio comissionado a importunar a humanidade, faria uso de um método engenhosamente perverso para arruinar as relações entre pessoas, comunidades e povos: eu repartiria os valores fundamentais da concórdia em dois cestos. Não mais do que dois cestos.
Em um deles, por exemplo, depositaria a valorização da família como unidade fundamental da sociedade, a incondicionalidade do direito à vida, a determinação na busca da paz social, a afirmação do trabalho como motor do progresso pessoal e comunitário, o empenho na produção de riquezas e o respeito às ambições íntimas de cada indivíduo.
No outro hipotético cesto, eu poderia depositar a prática de amparo aos enfraquecidos, o respeito à natureza humana e suas diversas manifestações, o desenvolvimento sustentável, a luta contra as desigualdades artificiais, a aceitação das diferenças naturais e o desejo de sempre buscar que tudo melhore para todos, fundamentado num agudo senso de solidariedade e cooperação.
Feita a partição dual, meu segundo esforço seria o de convencer as gentes que somente um cesto deveria ser escolhido para se chegar à justiça e ao bem estar comum. Tão somente um cesto por pessoa. E mais: com base num arcabouço teórico ambíguo, induziria o convencimento de que tudo o que não estivesse no cesto escolhido necessariamente deveria ser considerado maldito pelo indivíduo, pois fatalmente incompatível com os “valores certos”. [falácia lógica “envenenando o poço”] [1]
Em síntese: “- o meu cesto é o certo, e o outro cesto é o errado” seria um dogma.
Assim eu semearia o caos, fazendo com que valores harmonizáveis e complementares parecessem ser indiscutivelmente antagônicos. Seria uma questão de (pouco) tempo para que os sujeitos que decidiram por um dos cestos, odiassem os que escolheram o outro cesto (o ser humano é previsível).
Então, o terreno estaria preparado para o terceiro e principal golpe: em nome da “liberdade”, (que é um valor enaltecido por ambos os grupos), eu ardilosamente acrescentaria em cada um dos cestos padrões e atitudes que fossem agressivos da dignidade humana, como se fossem parte inafastável do conjunto de ideais “certos”, portanto irrenunciáveis.
Por exemplo, em um cesto seriam acrescentados a relativização por conveniência do direito à vida, a exaltação das drogas amortizadoras da realidade, a perseguição às religiões e o relativismo moral e, no outro, o preconceito, o elitismo, a exploração do semelhante, a aversão às mudanças, o egoísmo social e a radical justificação dos meios pelos fins. Mas sempre em nome da “liberdade”.
Assim, os dois grupos se atacariam mutuamente, explorando justamente as máculas do cesto alheio. [falácia lógica tu quoque (você também)][2]
Para a receita dar certo, seria preciso ainda inculcar nas pessoas que a solução para a construção de uma sociedade justa e próspera estaria plenamente contida somente no “seu” cesto, e que a mera simpatia por algo do “outro lado” seria tida como uma traição à totalidade do “nosso” cesto. [falácia lógica das falsas alternativas].[3]
Nunca se faria menção a valores construtivos que não fossem os do “seu” cesto. Jamais ! Pois “eles outros” são inimigos e fundamentalmente errados. Dessarte, os magnos valores que edificam a paz ficariam ocultos nos dois cestos, relegados ao segundo plano e definitivamente separados uns dos outros.
Imprescindível seria que todo indivíduo – eu disse todo – que ousasse avançar suas opiniões no plano social, fosse, logo na primeira oportunidade, estigmatizado como pertencente ao ideário do cesto “A” ou “B”, recebendo uma espécie de carimbo ideológico na testa.
Igualmente importante, seria precaver-se contra a grave possibilidade de alguém querer desmontar o esquema concebendo um inadmissível “terceiro cesto” contendo o melhor dos dois cestos originais ou ainda tentar expurgar deles os crimes contra a dignidade humana. A reação a esse absurdo teria que ser imediata, implacável e esmagadora: os assumidos partidários dos dois cestos primevos seriam compelidos a exterminar a honra do infeliz metido a espertalhão, cada um acusando-o de pertencer ao “outro lado” e estar empenhado em sabotar o “lado certo” [falácia lógica “culpado por associação”] [4]. Assim, dois punhos de ferro avançariam simultaneamente sobre o desgraçado, que precisaria de muita coragem para continuar com o discurso de aliança.
Consolidadas as posições e formatados os radicais, seria muito fácil manter um infindável conflito, pois o ser humano detesta ser confrontado, mesmo quando sabe estar equivocado. Ninguém quer sucumbir diante “deles”, os outros, os inimigos, os estranhos, os errados.
Não faltaria material humano ou motivos imediatos para uma luta permanente, pois seriam óbvios os sinais de decadência da sociedade que adviria deste conflito, (sempre por incontestável culpa “do outro” e de seus ideais, obviamente), num contínuo estímulo à guerra em nome do “cesto certo”. Nas trincheiras, as hostes em conflito seriam plurais, encerrando desde jovens impulsivos até idosos sem sabedoria.
Assim, a pretensa busca pela paz e bem estar social seria feita – literalmente – em uma guerra sem fim. Os soldados desta guerra trariam estampadas em suas fardas a expressão “SOMOS GUERREIROS DAS CERTEZAS ABSOLUTAS”.
Eu seria, assim, um demônio satisfeito, pois insegurança é minha divisa, conflito e competição são meus objetivos. Nunca cooperação. Nunca paz. Nunca harmonia. Sempre uma civilização mutilada e imperfeita, movida por certezas inquestionáveis.
[Faas_Rezrl]
.....∴.....
[1] Este tipo de incorreção caracteriza-se pela rejeição de um argumento baseado em uma condição negativa – não importa se verdadeira ou falsa – acerca da pessoa que o proferiu.
[2]Essa falácia se estabelece quando se usa os erros cometidos por outros – principalmente pelo próprio oponente na discussão – para desconsiderar o argumento apresentado.
[3]Este caso ocorre quando o argumentador propõe um número limitado de alternativas dentre todas as possíveis, em muitos casos já sugerido tendenciosamente, uma delas como sendo a verdadeira.
[4]Ocorre quando se refuta um argumento baseado apenas na ideia de que esses argumentos são típicos de um grupo de pessoas notoriamente criticáveis.
http://falaciasonline.wikidot.com/
Em um deles, por exemplo, depositaria a valorização da família como unidade fundamental da sociedade, a incondicionalidade do direito à vida, a determinação na busca da paz social, a afirmação do trabalho como motor do progresso pessoal e comunitário, o empenho na produção de riquezas e o respeito às ambições íntimas de cada indivíduo.
No outro hipotético cesto, eu poderia depositar a prática de amparo aos enfraquecidos, o respeito à natureza humana e suas diversas manifestações, o desenvolvimento sustentável, a luta contra as desigualdades artificiais, a aceitação das diferenças naturais e o desejo de sempre buscar que tudo melhore para todos, fundamentado num agudo senso de solidariedade e cooperação.
Feita a partição dual, meu segundo esforço seria o de convencer as gentes que somente um cesto deveria ser escolhido para se chegar à justiça e ao bem estar comum. Tão somente um cesto por pessoa. E mais: com base num arcabouço teórico ambíguo, induziria o convencimento de que tudo o que não estivesse no cesto escolhido necessariamente deveria ser considerado maldito pelo indivíduo, pois fatalmente incompatível com os “valores certos”. [falácia lógica “envenenando o poço”] [1]
Em síntese: “- o meu cesto é o certo, e o outro cesto é o errado” seria um dogma.
Assim eu semearia o caos, fazendo com que valores harmonizáveis e complementares parecessem ser indiscutivelmente antagônicos. Seria uma questão de (pouco) tempo para que os sujeitos que decidiram por um dos cestos, odiassem os que escolheram o outro cesto (o ser humano é previsível).
Então, o terreno estaria preparado para o terceiro e principal golpe: em nome da “liberdade”, (que é um valor enaltecido por ambos os grupos), eu ardilosamente acrescentaria em cada um dos cestos padrões e atitudes que fossem agressivos da dignidade humana, como se fossem parte inafastável do conjunto de ideais “certos”, portanto irrenunciáveis.
Por exemplo, em um cesto seriam acrescentados a relativização por conveniência do direito à vida, a exaltação das drogas amortizadoras da realidade, a perseguição às religiões e o relativismo moral e, no outro, o preconceito, o elitismo, a exploração do semelhante, a aversão às mudanças, o egoísmo social e a radical justificação dos meios pelos fins. Mas sempre em nome da “liberdade”.
Assim, os dois grupos se atacariam mutuamente, explorando justamente as máculas do cesto alheio. [falácia lógica tu quoque (você também)][2]
Para a receita dar certo, seria preciso ainda inculcar nas pessoas que a solução para a construção de uma sociedade justa e próspera estaria plenamente contida somente no “seu” cesto, e que a mera simpatia por algo do “outro lado” seria tida como uma traição à totalidade do “nosso” cesto. [falácia lógica das falsas alternativas].[3]
Nunca se faria menção a valores construtivos que não fossem os do “seu” cesto. Jamais ! Pois “eles outros” são inimigos e fundamentalmente errados. Dessarte, os magnos valores que edificam a paz ficariam ocultos nos dois cestos, relegados ao segundo plano e definitivamente separados uns dos outros.
Imprescindível seria que todo indivíduo – eu disse todo – que ousasse avançar suas opiniões no plano social, fosse, logo na primeira oportunidade, estigmatizado como pertencente ao ideário do cesto “A” ou “B”, recebendo uma espécie de carimbo ideológico na testa.
Igualmente importante, seria precaver-se contra a grave possibilidade de alguém querer desmontar o esquema concebendo um inadmissível “terceiro cesto” contendo o melhor dos dois cestos originais ou ainda tentar expurgar deles os crimes contra a dignidade humana. A reação a esse absurdo teria que ser imediata, implacável e esmagadora: os assumidos partidários dos dois cestos primevos seriam compelidos a exterminar a honra do infeliz metido a espertalhão, cada um acusando-o de pertencer ao “outro lado” e estar empenhado em sabotar o “lado certo” [falácia lógica “culpado por associação”] [4]. Assim, dois punhos de ferro avançariam simultaneamente sobre o desgraçado, que precisaria de muita coragem para continuar com o discurso de aliança.
Consolidadas as posições e formatados os radicais, seria muito fácil manter um infindável conflito, pois o ser humano detesta ser confrontado, mesmo quando sabe estar equivocado. Ninguém quer sucumbir diante “deles”, os outros, os inimigos, os estranhos, os errados.
Não faltaria material humano ou motivos imediatos para uma luta permanente, pois seriam óbvios os sinais de decadência da sociedade que adviria deste conflito, (sempre por incontestável culpa “do outro” e de seus ideais, obviamente), num contínuo estímulo à guerra em nome do “cesto certo”. Nas trincheiras, as hostes em conflito seriam plurais, encerrando desde jovens impulsivos até idosos sem sabedoria.
Assim, a pretensa busca pela paz e bem estar social seria feita – literalmente – em uma guerra sem fim. Os soldados desta guerra trariam estampadas em suas fardas a expressão “SOMOS GUERREIROS DAS CERTEZAS ABSOLUTAS”.
Eu seria, assim, um demônio satisfeito, pois insegurança é minha divisa, conflito e competição são meus objetivos. Nunca cooperação. Nunca paz. Nunca harmonia. Sempre uma civilização mutilada e imperfeita, movida por certezas inquestionáveis.
[Faas_Rezrl]
.....∴.....
[1] Este tipo de incorreção caracteriza-se pela rejeição de um argumento baseado em uma condição negativa – não importa se verdadeira ou falsa – acerca da pessoa que o proferiu.
[2]Essa falácia se estabelece quando se usa os erros cometidos por outros – principalmente pelo próprio oponente na discussão – para desconsiderar o argumento apresentado.
[3]Este caso ocorre quando o argumentador propõe um número limitado de alternativas dentre todas as possíveis, em muitos casos já sugerido tendenciosamente, uma delas como sendo a verdadeira.
[4]Ocorre quando se refuta um argumento baseado apenas na ideia de que esses argumentos são típicos de um grupo de pessoas notoriamente criticáveis.
http://falaciasonline.wikidot.com/