o guerrilheiro do parque barigUi
Uma criança que passeava com os pais o notou, meio que escondido no mato rasteiro daquela ilha perto da ponte no Parque Barigui. A mãe, desconfiada, também viu algo e chegou a apontar para o estranho personagem, mas não deu atenção, achou que era só mais um esquisito morador de rua.
Num outro dia, um grupo de adolescentes chegou a filmá-lo com seus smartphones e um deles compartilhou na grande rede. Via-se um homem barbudo, deitado de bruços no meio do capinzal da beira da ilha, ao que parece, observando a circulação no parque. Vestia uma surrada farda camuflada e tentava completar seu mimetismo com galhos e folhas. A imagem viralizou e foi destaque num portal de notícias. Logo ficou conhecido como "o guerrilheiro do Parque Barigui". A partir de então, os frequentadores se acostumaram a dar uma olhada em direção à ilha, na esperança de ver o personagem, a esta altura já equiparado aos famosos jacarés do parque.
Depois de uma efêmera notoriedade, os anos passaram e vez ou outra surgiam testemunhos vagos e desencontrados de avistamentos do guerrilheiro. Até que um dia a Guarda Municipal foi chamada porque uma moça havia sido assaltada enquanto caminhava sozinha no parque. Ela relatou que o marginal tinha corrido em direção à ponte e sumido. Embora a descrição do ladrão não lembrasse em nada o guerrilheiro, um inspetor lembrou da antiga história e resolveu averiguar a ilha do rio. Chamou reforço e, em pouco tempo, vinte policiais varriam cada palmo da mata. Não encontraram nada, além de duas capivaras. Nem sinal de acampamento ou fogueira, muito menos do guerrilheiro.
Perto de um ano depois, numa fria madrugada de julho, um vizinho do parque ligou para os bombeiros porque havia visto fogo na ilha. Os soldados vieram rápido, mas só encontraram restos ainda quentes de uma fogueira feita, ao que pareceu, para assar pinhões (a chamada sapecada). Até que, num domingo daquele mesmo inverno, perto do anoitecer, alguns adolescentes bêbados viram o guerrilheiro em posição de vigilância em cima de uma árvore da ilha. Por diversão e estupidez alcoólica, passaram a tentar acertá-lo com garrafas de cerveja vazias e pedras. Sem sucesso, até que um deles, mais alterado, foi até sua caminhonete e voltou com uma pistola. Foram cinco tiros em direção ao vulto, até que o próprio atirador caiu desfalecido. No hospital, além da intoxicação alcoólica, lhe foi diagnosticado um ferimento na cabeça causado por "objeto contundente esférico", posteriormente encontrado e identificado como uma singela "bolinha de gude".
O caso ganhou repercussão nos programas policiais: o guerrilheiro do Parque Barigüi existia mesmo e havia atacado um frequentador inocente com um tiro de estilingue, ou uma flechada, segundo outra versão. Os amigos do ferido, embora não lembrassem muita coisa, tratavam de acrescentar detalhes inexistentes à estória, alegando que foi uma agressão injusta. Convenientemente, ninguém citou os tiros dados em direção ao guerrilheiro. A arma sumiu. Um morador testemunhou que ouviu tiros e a polícia novamente vasculhou a ilha, nada encontrando.
Choveram queixas na internet. Uns reclamando das constantes bagunças de fim de semana no parque, outros do absurdo de um marginal morar na mata. O prefeito, em sua conta no Twitter, disse que estava sendo feita uma varredura naquele espaço público, em busca de "eventuais ocupações irregulares". O governador, atento ao ano eleitoral e ainda desgastado por conta de escândalos de corrupção, mandou um batalhão da Polícia Militar "caçar" em todo o parque qualquer marginal que nele pudesse estar escondido. De novo ninguém foi encontrado, nenhum vestígio humano, sequer restos da fogueira de pinhões.
Pelas redes sociais um grupo de moradores das redondezas e frequentadores manifestou apoio e simpatia pelo "guerrilheiro". Afinal, por causa dele a segurança no parque havia aumentado muito. A presença da polícia havia espantado baderneiros e drogados. Impulsionado por uma campanha no Facebook, ele ganhou um fã-clube que crescia a cada dia. Os programas policiais da hora do almoço passaram a tratar o guerrilheiro como uma espécie de justiceiro da ordem e da ecologia, um defensor do sossego. Numa postagem, havia o testemunho anônimo de uma senhora contando que ele pôs para correr três marginais que a cercaram quando caminhava sozinha numa área erma. A polícia sempre negou conhecimento de tal ocorrência.
Um estudante de design criou camisetas com a estampa de um homem barbudo em cima de uma árvore, em atitude de vigilância, nas costas havia o desenho de um estilingue circundado pela expressão "keep out". Fez muito sucesso. Os fãs estabeleceram o dia sete de julho (o dia da estilingada), como o "Dia do Guerrilheiro do Parque Barigui". No sábado posterior a esta data, logo cedo armavam uma tenda em frente a ilha, faziam uma fogueira, vendiam camisetas, quentão e pinhões cozidos. Algumas ONGs promoviam feiras de adoção de animais abandonados e distribuição de mudas de árvores nativas. As pessoas se vestiam com roupas camufladas surradas e era feita a eleição do melhor "cover" do guerrilheiro. Lá pelas oito da noite, cantavam um grande "parabéns pra você" e a festa se encerrava. A Prefeitura primeiro tolerou, depois autorizou o evento. Nunca se soube que o guerrilheiro tenha aparecido nessas ocasiões, mas sua presença era por todos sentida.
Numa eleição até apareceu um candidato a vereador que se dizia ele próprio o "Guerrilheiro do Parque". Ninguém acreditou e provavelmente seus setenta e oito votos tiveram outras motivações.
Com o tempo, a festa de aniversário do guerrilheiro diminuiu, junto com sua fama. Três pares de anos depois, o evento não mais acontecia, mas muitos ainda lembravam da estória.
Os rumores da "volta do guerrilheiro" surgiram quando, dez anos depois da estilingada no pinguço, um grupo inteiro de escoteiros jurou tê-lo visto enquanto faziam uma caminhada noturna no parque. Uma menina viu algo estranho e deu o alerta para a tropa. Dezenas de lanternas foram direcionadas e viu-se com rara nitidez o personagem. Era o guerrilheiro: as roupas, a face barbada, a mesma aparência que as imagens da Internet sugeriam, só que envelhecida. Ele estava no lado norte da ilha, perto da água, em pé com as mãos na cintura. Junto dele estava um grande cão branco, silencioso e impassível como o dono. A inusitada dupla ficou por uns dez segundos admirando o grupo de escoteiros com a mesma curiosidade e espanto com que era observada. Quando o chefe escoteiro tentou comunicar-se, já era tarde. Sumiram homem e cão.
Muito tempo já passou depois disso e o assunto sempre volta ao noticiário quando algo de estranho acontece no Parque Barigui. As autoridades dizem que não há ninguém morando lá, talvez por não querer admitir que alguém conseguiria esconder-se da vigilância por tanto tempo. Alguns moradores do entorno juram que ele aparece de vez em quando, rapidamente. Vídeos embaçados eventualmente surgem no canal do guerrilheiro no Youtube (administrado por fãs), mas, com a profusão de fakes, ninguém mais dá crédito às imagens.
Os frequentadores habituais asseguram que ele ainda está lá, vigilante. Talvez disfarçado como um senhor de meia idade, caminhando tranquilamente de bermudas e tênis, ou talvez como um pipoqueiro observador. Mas, sob qualquer disfarce, ele está sempre atento. Afinal, uma vez guerrilheiro, sempre guerrilheiro.
[Faas Rezrl]